
Por Amauri Eugênio Jr.
O que vem à sua cabeça ao ouvir falar sobre culinária nordestina? Que os pratos típicos do Nordeste são exóticos? O paladar é para lá de forte, ou que o prato é cheio de condimentos e é apimentado? Que não dá para entender por que alguns ingredientes são usados? A combinação dos ingredientes usados deixa a refeição, digamos, pesada e que isso dificulta a digestão? Que é bem diferente em comparação com pratos tradicionais, como a clássica combinação arroz, feijão e algum complemento?
Você até pode usar os argumentos citados acima para falar sobre pratos nordestinos, mas algumas coisas não podem ser negadas. Primeiro: que, por mais que se tente enquadrar os pratos na categoria de culinária exótica, trata-se de algo genuinamente brasileiro, ou seja, não faz sentido recorrer ao separatismo gastronômico. Segundo: para quem ainda tem aquela ideia típica de que casas do Norte e restaurantes com temática da “terrinha” têm decoração caricata, com uma série de chifres de bois, peças de carne penduradas no ambiente, entre outros aspectos que deixariam qualquer pessoa aficionada por limpeza de cabelo em pé, a história é outra: higiene e um quê de elegância informal ditam a cara das atuais casas com foco na gastronomia nordestina.
Além disso, não importa a classe social dos clientes, pois empresários, políticos e profissionais que lidam com trabalho braçal são iguais e apreciam do mesmo modo os pratos made in Nordeste. Para completar, foi-se o tempo em que o paladar do paulistano era restrito a pratos típicos do Centro-Sul brasileiro. Como consequência, quem mora por aqui se tornou ao menos admirador da comida nordestina. Inclusive quem mora em Guarulhos. “Antes, costumava-se comer macarronada ou fazer churrasco aos domingos. Hoje, os pratos do Nordeste vêm ganhando espaço. O paulista gosta de comida bem temperada e de outros sabores, o que é o caso da culinária nordestina, em que vai de tudo”, comenta Marcos Mazzoni, sócio da Casa do Norte Santa Clara.
Na boca do povo
Baião de dois, caldo de mocotó, favada, escondidinho de carne seca com mandioca, sarapatel, carne de sol… Mesmo que você não seja um entusiasta da comida nordestina, muitos desses nomes já são familiares, sejamos francos. Isso se você já não provou algo aqui e ali, ou se não tem um pé no Nordeste. Segundo dados do Censo de 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), um a cada cinco habitantes de Guarulhos vem de lá. Logo, tais pratos, assim como outros considerados peculiares e bem característicos, já fazem parte da realidade de parcela significativa da cidade. “O que torna a gastronomia nordestina tão peculiar é a quantidade de produtos encontrados lá, que são tradicionais [da região], e comidas que o nordestino trouxe para cá, que caíram no gosto do paulistano [e do guarulhense]. O consumidor quer provar o que julga ser diferente, apesar de que alguns pratos de lá foram adaptados para quem mora aqui”, detalha Netto Nunnez, proprietário do Bar e Restaurante do Compadre.
Duvida? Pois bem, a culinária nordestina tem presença das mais marcantes na teledramaturgia. Na novela “Império”, das 21h, o comendador José Alfredo Medeiros (Alexandre Nero) não abre mão de comer um bom prato de sarapatel, ao passo que o chef Vicente (Rafael Cardoso), que saiu do Nordeste para tentar a sorte no Rio de Janeiro e, graças ao seu talento com temperos e afins, se deu bem ao ponto de comandar um restaurante que leva seu nome – e cujo foco é a gastronomia nordestina, é claro. “Acabou o preconceito com a comida nordestina, que era considerada ‘bagunçada’ por causa da mistura de ingredientes. O consumo está crescendo muito”, destaca Mazzoni. Além disso, uma maneira para combater qualquer preconceito que possa existir com os pratos é permitir-se. “Se a pessoa não se acostumou [com o gosto dos pratos], o que digo é: experimente e ‘vai’. Coma sem medo”, ressalta Bonifácio Cardoso dos Santos, administrador do Restaurante Acarajé.
Cultura e história a gosto
Pensemos sobre o seguinte: o litoral do Nordeste foi uma das principais portas de entrada do Brasil na época colonial e, como consequência, carrega diversas influências culturais, inclusive na gastronomia. Também, pudera: o Brasil foi submetido à colonização de Portugal no século XVI, assim como características e costumes típicos de indígenas e africanos compuseram a essência do brasileiro e, obviamente, do nordestino. Além disso, traços culturais de holandeses, franceses e norte-americanos foram incorporados aos costumes da região, e, lógico, também à gastronomia. Como se pode imaginar, o resultado desse caldeirão cultural é a culinária nordestina tal qual conhecemos.
Pois bem, a relação dos pratos com a cultura foi objeto de estudos e de teorias, dentre os quais pode se destacar o escritor e antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), considerado o “Papa” do folclore brasileiro e famoso por estudar a tradição alimentar brasileira – incluindo a nordestina, é evidente. De modo resumido, sua obra retrata uma espécie de ritual alimentar, desde o preparo dos alimentos até a refeição. Além disso, ele considerou que a junção de alimentos associados à culinária nordestina, relativos aos três grupos étnicos que formaram a base cultural do brasileiro, contribuiu para a essência alimentar do país. A mandioca e a pimenta, só para citar alguns, vêm do cardápio indígena. Da parte africana, além da pimenta, o leite de coco merece menção honrosa. Já na influência portuguesa, pode ser citada a carne de porco, presença fundamental em muitos pratos da culinária tradicional brasileira. Como consequência, o mix de influências gastronômicas, adaptadas de modo dinâmico ao cotidiano brasileiro, resultou em pratos típicos, como o sarapatel e o vatapá
Cardápio bom da peste!
Baião de dois: presença obrigatória em todo e qualquer cardápio. O prato leva feijão-verde (de corda) ou fradinho, arroz branco, carne-seca ou de sol e queijo-coalho. Pode ainda ter calabresa, torresmo e bacon;
Tapioca: o prato, feito à base de goma de mandioca, pode contar com recheios doces ou salgados;
Caldo de mocotó: é feito a partir da pata do boi, da qual sai o caldo característico. Vai bem com farinha e pimenta;
Acarajé: bolo de feijão-fradinho frito em azeite de dendê, que pode ser recheado com vatapá, caruru e molho de pimenta;
Vatapá: o creme de camarão pode levar pão, amendoim, castanha e azeite de dendê;
Caruru: pirão feito com farinha de mandioca que leva quiabo, camarão, tempero verde e azeite de dendê;
Favada: prato feito à base de fava – leguminosa semelhante ao feijão, mas maior – que leva calabresa, bacon e, dependendo do modo de preparo, lombo;
Bolo de rolo: doce feito com pão de ló enrolado com camadas de goiabada e coberto com açúcar;
Dobradinha: feito à base de feijão com bucho de boi;
Buchada de bode: o prato leva vísceras cozidas no estômago (bucho) do animal;
* Fonte: “Aromas, cores & sabores do Brasil”, do guia turístico do “Portal da Copa” (www.copa2014.gov.br/pt-br/brasilecopa/cultura/nordeste)