Por Amauri Eugênio Jr.
Tem hora em que é difícil entender por que uma cidade do tamanho de Guarulhos não tem uma cena audiovisual tão forte como a de Santo André, no ABC paulista. Mas, com olhar um pouco mais apurado, algumas coisas vêm à tona: parece, em alguns momentos, que o guarulhense não se imagina fazendo trabalhos culturais, como se isso só fosse possível em outros locais. Para completar, falta apoio significativo, seja do poder público, seja da iniciativa privada. Mas, apesar das adversidades, o circuito do cinema local tem se movimentado, muito por causa do esforço de caras que não se deixam abater pelas limitações financeiras, até mesmo para equipamentos e demais elementos para produção. À base de muita força de vontade e, em especial, criatividade, o filme vem rodando e coisas boas vêm sendo retratadas. Sem mais rodeios, confira a seguir histórias de quem vem dando vida ao ainda tímido cinema guarulhense. Tímido, é verdade, mas cheio de vontade de crescer e aparecer.
Vai, Guarulhos!
Da fase amadora à profissional. Dos campeonatos de várzea ao Campeonato Paulista. Da tradição bairrista ao crescimento para chegar ao tamanho da metrópole guarulhense. De A. D. Vila das Palmeiras a A. D. Guarulhos. Da história oral e registros históricos à telona. Esse é o ponto de partida do documentário “Vai Guarulhos – O filme”, produzido pelo pessoal da Perigo Filmes e que está previsto para estrear em dezembro, coincidência ou não, na mesma época do aniversário da cidade. E só de pensar que, assim como diversos aspectos da história da A.D., atualmente na série A2 do Campeonato Paulista, o início era previsto para ser bem menor.
Em princípio, Fabio Pierrobom, vice-presidente do clube, conseguiu verba do FunCultura (Fundo Municipal de Cultura) para produzir um filme sobre o clube. Mas, no primeiro momento, ainda não tinha ideia de como realizá-lo. Foi nesse momento quando Fabrício Gallinucci e os guarulhenses Guilherme Severo e Rodrigo Mesquita, da Perigo Filmes, entraram na história e deram nova cara ao projeto. O resultado? Cerca de 100 horas de gravações, incluindo depoimentos de quem criou o clube e o administra atualmente, captadas por um ano, dando forma ao longa-metragem “Vai Guarulhos – O filme”.
“Eu e o Rodrigo somos de Guarulhos. Fomos estudar cinema e abrimos uma produtora, mas a gente sempre quis fazer alguma coisa para a cidade. Quando pintou a oportunidade, a gente resolveu colocar o nosso melhor no filme e fazer algo que comunicasse com o público da cidade. Que seja o primeiro de muitos filmes”, conta Guilherme, produtor-executivo do longa-metragem, em um bate-papo com a reportagem da Weekend, que durou por mais de uma hora. Rodrigo é o diretor de fotografia do filme e Fabrício assina a direção do projeto. Apesar de ser de São Bernardo do Campo, o diretor captou como poucos a complexidade da história da equipe e – por que não? – do que é ser guarulhense. “[ A A.D. Guarulhos era um] nasceu para ser um time de amigos, mas passou por uma decisão bem drástica: tornar-se profissional. Isso aconteceu por um motivo específico: eles eram muito bons e jogavam muita bola no comecinho dos anos 80.
Quando se consagraram, no fim dos anos 70, apareceu uma oportunidade casual de se tornarem profissionais. A história [da equipe] muda aí”, explica, ao falar do ponto de virada da história da A.D. e do filme, cujo plano de divulgação é regional. Afinal, a história é sobre a cidade e para o guarulhense, inclusive para se ver na telona.
Durante a produção, além da pesquisa histórica, eles perceberam algumas nuances no comportamento de quem fundou o time e daqueles que o administram. Enquanto o pessoal da velha guarda tem perfil mais saudosista, querendo mantê-lo dentro apenas da vila das Palmeiras, onde surgiu, os mais novos querem deixá-lo do tamanho e com a importância da cidade. Isso fica ainda mais emblemático com a época de produção do longa, quando o guarulhense decidiu tomar a cidade para si mesmo e, dentro disso, melhorá-la.
“É difícil entender por que uma cidade de quase 1,5 milhão de habitantes não se vê e tem identidade com um time de futebol. Cidades pequenas têm times maiores [do que a A.D.]. Torcer por um time como esse é [um ato de] resistência territorial”, detalha Guilherme, ao falar sobre como o processo o influenciou. “Durante o filme, tentamos manter distanciamento [emocional com o clube]. Hoje, eu torço para a A.D. Guarulhos. Torcia para o São Paulo e parei de torcer.”
Ah, sim: a trilha sonora foi composta no mesmo estúdio onde foi feita a do filme “Cidade de Deus”, e a equipe de produção tinha nove pessoas.
Acompanhe as próximas cenas em: www.perigofilmes.com
Câmera na mão e ideias na cabeça para a cidade parar
Falar sobre a produção do videoclipe/curta-metragem “Se a cidade parar”, do power trio guarulhense Carbônica, sem ser em primeira pessoa fica difícil. Primeiro, porque não tenho como esconder que sou amigo dos caras da banda e da equipe de produção. Segundo, porque dei uma força na produção e uns pitacos aqui e ali no roteiro – nos créditos, sou corroteirista e assistente de direção do projeto.
O vídeo, que retrata o caos da metrópole e como o cotidiano sufoca qualquer pessoa, foi produzido pelo Coletivo 308, do qual faço parte, dirigido pelo cineasta André Okuma e coestrelado pelos três integrantes da banda – Will Carbônica, vocal e guitarra, na sequência de uma manifestação próxima a um bar; Vini Carbônica, vocal, baixo e samplers, em um escritório; e Leandro Sousa, baterista, em um engarrafamento. Outros destaques vão para Juliano Lourenço, ator e corroteirista do projeto, que interpretou um apresentador de um telejornal sensacionalista; e Laís Trajano, que participou, ao lado de Will, da fuga após a cena da manifestação. Ah, o clipe foi gravado sem verba alguma.
A ideia era, em princípio, fazer um vídeo com características de superprodução, com explosão de um prédio, briga de trânsito e protesto. Mas, como não é fácil gravar sequências desse tipo sem grana, o jeito foi recorrer à criatividade e ao improviso. O resultado, caso alguém pergunte, ficou profissional. “Neste e em outros processos que tenho feito, percebi que, na verdade, o dinheiro é mais limitador do que libertador. Fazer um filme sem ter de prestar contas, mudar o projeto no meio e fazer o que quiser do jeito que você quiser torna, de certa forma, a criação quase sem limites”, comenta André.
Durante as gravações, algumas situações curiosas vieram à tona, como não poderia deixar de ser. Para simular o choro no trânsito, Leandro teve de recorrer a uma cebola; e durante as gravações da fuga, uma pessoa parou para socorrer Will e Laís, imaginando que estivesse acontecendo um problema com eles. “Como eu estava filmando, ele me achou um escroto por não socorrer e ficar filmando, e só acreditou que era um filme depois, com a explicação da Laís. Ah, o legal de fazer filmes é que você sempre tem histórias pra contar sobre as gravações”, destaca André.
Aniversário fantástico
“Fantástico” remete ao gênero audiovisual fantástico, que abrange ficção científica, fantasia e terror. “Aniversário” diz respeito ao filme “O aniversário – O estranho caso de Lúcia e Roberto”, idealizado pelo cineasta Rubens Mello, referência do cinema fantástico no Brasil; está em fase de produção e captação de recursos (crowdfunding).
Surgiu de um projeto chamado “Tatúrula, sinfonia do medo”, em princípio idealizado para ser composto por sete curtas-metragens, sendo um deles “A história de Lúcia e Roberto”. Mas, a história foi tomando outras proporções com o passar do tempo, precisamente quando Rubens releu o poema “O guardador de rebanhos”, de Fernando Pessoa sob o heterônimo de Alberto Caeiro. “Esse poema foi uma das inspirações no processo da escrita do roteiro e está tão alinhavado ao filme que parece ser a descrição da conturbada mente de Lúcia. Então, reescrevi a história, tendo como consultora uma grande parceira: Geisla Fernandes, jovem e talentosa diretora e roteirista, parceira de vários projetos”, detalha Rubens.
Vamos à história: o projeto conta a história de Lúcia, atriz frustrada que cuida da mãe viúva. No aniversário de sua mãe, ela recebe Roberto, com quem teve relação avassaladora, e sentimentos extremos, como amor e ódio, e sanidade e loucura, vêm à tona e levam a história a proporções inimagináveis. As gravações, que iriam acontecer em novembro, foram adiadas para a segunda semana de dezembro. “Faremos loucura, como sempre fazemos, e vamos rodar em uma semana. ‘O aniversário’ é um filme de horror psicológico, autoral e quero trabalhar imagens de impacto. Quero que neste filme o espectador tenha de utilizar sua capacidade cognitiva [intelectual] e quero que fique ligado. Vamos tocar em temas tabus”, ressalta o realizador.
O projeto está captando recursos via crowdfunding na plataforma Kickante. O valor arrecadado, de R$ 1.060 (até 14 de outubro), equivale a apenas 5% do valor total – R 21.050. Como ainda há 28 dias para fazer doações, interessados podem colaborar com “O aniversário” em: goo.gl/WaJT3l.
Cinema a céu aberto
“Propomos o que chamamos entre nós de Cinema do Bueiro, um cinema marginal, mas que tem como aspecto singular a produção advinda do gueto. Temos preferência por tratar do universo urbano da periferia, o submundo, as mazelas sociais. São filmes ‘surgidos’ no esgoto, feitos no subterrâneo e que buscam tratar de personagens inseridos nesse contexto”. É assim como Daniel Neves, integrante da Companhia Bueiro Aberto, define o trabalho do coletivo existente há três anos e composto também por Diogo Fonseca e Caio Fiumari. Sim, o trabalho deles é “pesado” e não tem papas na língua. Ou melhor: não tem medo de colocar o dedo na ferida e criticar o que causa incômodo.
Desde o surgimento, em 2013, o Bueiro Aberto produziu dois longas-metragens, três médias-metragens sobre cultura popular e oito curtas experimentais, incluindo “Contravenção”, lançado neste ano. As referências, além do dia a dia na “quebrada”, passam pela literatura marginal e autores como Nelson Rodrigues, Charles Bukowski, Plínio Marcos e o poeta Sérgio Vaz, chegando à Nouvelle Vague – corrente cinematográfica francesa da segunda metade do século XX – e filmes de Pedro Almodóvar e Martin Scorsese.
Apesar das dificuldades para produção, ainda mais quando o assunto é a cena independente, os caras do Bueiro Aberto driblam as adversidades e não param de filmar. Tanto que há dois projetos para o futuro próximo: “Matéria de capa”, que visa a discutir os limites do jornalismo e até onde um profissional vai para conseguir uma matéria de capa; e “O absurdo”, que se passa em Guarulhos e servirá como base para o longa-metragem “O medo da noite”, previsto para 2016. Em resumo: vem coisa boa por aí. “São projetos arrojados em que estamos firmando cada vez mais nossa estética, o que queremos falar, como queremos filmar, com quais atores temos mais afinidade, e qual a equipe desejamos para o processo”, ressalta Daniel, ao dar um recado definitivo para qualquer pessoa interessada em colocar a mão na massa. “Se estiver a fim de produzir, junte os amigos, arrume uma câmera, bole um roteiro e vá em frente.”
Conheça o trabalho do pessoal em: companhiabueiroaberto.blogspot.com.br.
Matéria originalmente publicada na Revista Weekend – 302